O RONRONAR DOS FELINOS

 Souza Junior, A.B. e Moraes, I.A. O ronronar dos felinos. Webvideoquest de fisiologia veterinária. 2016

 

Introdução.
O ronronar é um comportamento comum nos felinos, facilmente audível e palpável na maioria dos gatos domésticos (REMMERS e GAUTIER, 1972) e já foi observado em felinos selvagens tais como o (Puma concolo), o guepardo Acinonyx jubatu) e a jaguatirica ( Leopardus pardalis) (DARWIN, 1872). E também no caracal (Caracal caracal) e no gato-mourisco (Puma yagouaroundi ( (PETERS e HAST, 1994). De acordo com Darwin (1872) o tigre (Panthera tigres), quando agradado, emite um som semelhante ao fungar acompanhado de um fechamento de pálpebra. Segundo ele o leão (Panthera leo), a onça pintada (Panthera onca) e o leopardo (Panthera pardus) não ronronam. De acordo com Leyhausen (1950) os filhotes de espécies da subfamília Panthera muito provavelmente são capazes de ronronar.
O ronronar parece representar um estado de excitação, ocorrendo em momentos de interação entre o animal e outro organismo amigável. É um comportamento extremamente comum quando o animal está na presença de seres humanos amigáveis, podendo não ser percebido devido à ausência de som audível para nós (sem auxílio de estetoscópio) (REMMERS e GAUTIER, 1972). Segundo Moelk (1944) o som da chegada de uma pessoa familiar e querida pelo animal pode acarretar em algum tipo de vocalização que pode evoluir para o ronronar.
Os felídeos estão entre os mais bem-sucedidos carnívoros que já se desenvolveram da linhagem mamífera (EKLUND et al, 2010). A presença ou ausência do ato de ronronar nos felídeos é, tradicionalmente, relacionada às diferenças na estrutura do osso hioide, visto que podemos encontrar dois tipos de hioides nos felinos. Em cinco espécies o osso hioide contém um ligamento cartilaginoso, nas demais espécies este é completamente ossificado (PETERS e HAST, 1994). De acordo com esses autores, todas as espécies de felídeos que são comprovadamente capazes de ronronar possuem o osso hioide completamente ossificado, porém ainda faltam evidências da capacidade de ronronar em muitas espécies que possuem hioide desse tipo, por esse motivo, ainda não é possível comprovar que o fato de o osso hioide ser ossificado irá levar invariavelmente à capacidade de ronronar. Pocock (1916) foi pioneiro ao estudar o osso hioide dos felinos e perceber que este participava de outro som além do rugido, nesse caso ele se referia ao ronronar. Segundo Peters e Hast (1994) as espécies em que o osso hioide possui ligamento rugem, mas não ronronam, enquanto as espécies com hioide ossificada ronronam, mas não rugem.
Pocock (1916) considerou essa diferença entre os hioides dos felídeos tão importante que definiu este como critério de diferenciação entre duas subfamílias da Felidae , os Felinae e os Pantherina , sacramentando a diferença entre os felídeos que rugem e os felídeos que ronronam. Posteriormente, Hemmer (1966) descobriu uma exceção à essa regra: o leopardo da neve ( Panthera uncia ) que não ruge e ronrona, apesar de seu hioide possuir ligamento. Com essa descoberta foi concluído que não há correlação direta entre a estrutura do osso hioide e sua vocalização (HEMMER, 1978).

 

O Ronronar nos Gatos Domésticos
Segundo Moelk (1944), as vocalizações do gato doméstico quando dirigidas ao ser humano geralmente estão divididos em três situações: como pedido de carinho, como uma saudação carinhosa ou como demonstração de simpatia. Segundo ele é a vocalização mais comum na resposta do gato doméstico ao carinho humano.
Normalmente o ronronar é interpretado como indicativo de felicidade, satisfação, porém alguns gatos ronronam no momento da alimentação, claramente solicitando comida ao seu proprietário (MCCOMB et al, 2009). O ronronar pode ser facilmente obtido por um estranho a partir do carinho em curto espaço de tempo (MOELK, 1944). No gato doméstico, muitos sinais de interação com humanos parecem ter origem no período de dependência desse animal com a mãe, que também é o momento em que comportamentos sociais mais prevalecem nesses animais e que são conhecidos por sua pouca interação, assim como os demais felinos (MCCOMB et al, 2009).
É sabido que a partir da quinta semana os filhotes já são capazes de ronronar para a mãe como uma tentativa de comunicação, assim como reagir ao toque ou a voz da mãe (MOELK, 1979). Alguns estudos indicam que os gatos são capazes de ronronar quase que ao nascer, ou partir de dois dias de idade, e primariamente manifestam o ronronar ao mamar, e com esse comportamento induzem a mãe aos cuidados maternais (HASKINS, 1977; MOELK, 1944). Outros autores concordam que o ronronar é um contato manipulativo, um meio de solicitar carinho, presumidamente oriundo do comportamento encontrado no período neonatal (TURNER e BATESON, 1988). E já foi inclusive comprovado o efeito calmante do ronronar de fêmeas lactantes sobre filhotes (LUSCHEKIN et al, 1989).
Foram identificados dois tipos de ronronar (espécie-específicos) utilizados pela mãe para se comunicar com seus filhotes: o primeiro foi encontrado em mães lactantes e era abaixo de 1 kHz, de baixa intensidade e longa duração, modulados pelo ciclo respiratório, e utilizados pela mãe quando estas estavam cuidando dos filhotes; o segundo tipo de ronronar representou chamados curtos de moderada intensidade com frequência de no máximo 4 kHz, esse ronronar foi observado em mães que chamavam seus filhotes quando estes se encontravam afastados, quando estas desejavam reunir os filhotes (LUSCHEKIN et al, 1989).
Acredita-se que o ronronar dos filhotes tenha papel parecido ao do sorriso do bebê humano, ajudando a estabelecer e manter um relacionamento próximo com a mãe. Também como no sorriso dos humanos, o ronronar de um gato adulto pode sugerir a aceitação da dominação em relação a outro gato e diminuir as probabilidades de um ataque (TURNER e BATESON, 1988).
Gatos adultos podem ronronar quando em contato com algum membro da família e durante estimulação tátil com objetos inanimados (KILEY-WORTHINGTON, 1984). As circunstâncias comuns em que percebemos o ronronar geralmente são positivas, aparentemente prazerosas para o gato, porém há exceções: veterinários comumente encontram gatos que ronronam continuamente quando se encontram cronicamente doentes ou em dor severa (BEAVER, 1992).
A duração do ronronar no gato adulto é variada, a partir de 2 segundos, geralmente à uma frequência de 25-30 Hz, de boca fechada, e decorrente de contato (TURNER e BATESON, 1988).
Foi observado que a frequência do ronronar de cada indivíduo não se altera com a idade (SISSOM et al, 1991) e que a sensibilidade dos felinos ao ronronar quando utilizado para comunicação se dá provavelmente devido à sua baixa frequência, como uma vibração, para que essa possa percorrer pequenas distâncias pelo ambiente (LUSCHEKIN et al, 1989).
Segundo Sissom et al., (1991), o ronronar pode ocorrer simultaneamente a outros tipos de vocalização

 

Mecanismo do Ronronar dos Felinos
O Ronron dos felinos resulta da ativação alternante altamente irregular do diafragma e dos músculos laríngeos intrínsecos na frequência de 25 vezes por segundo durante tanto a inspiração quanto na expiração (REMMERS e GAUTIER, 1972). Segundo Moelk (1944), o ronronar acompanha o ritmo da respiração.
Geralmente a porção do ronronar que ocorre durante a inalação é mais alta e áspera do que a que ocorre durante e expiração. Durante o ronronar produzido na inalação podemos sentir uma vibração mais forte e ritmada na garganta em comparação com o ronronar produzido durante a expiração. A intensidade do ronronar vai variar de acordo com o interesse do animal na situação que desencadeou o processo (MOELK, 1944).
Em um estudo que visava estudar o ronronar felino foram utilizados eletromiografia e técnicas de registro da pressão traqueal. O estudo demonstrou que o ronronar provavelmente resulta de algum mecanismo oscilante dentro do sistema nervoso central (REMMERS e GAUTIER, 1972).
Reece (2006) informa que o ronronar ocorre em três ciclos: fechamento da glote, início da abertura da glote e produção de som, e abertura completa da glote (baixa resistência da glote e fluxo aéreo elevado). Segundo o autor o fechamento da glote ocorre quando os músculos adutores da laringe se contraem (as cordas vocais tornam-se aproximadas). Cada um dos 25 sons sucessivos associados a um segundo de ronronar é produzido quando a diferença de pressão, criada em cada lado da glote fechada, é dissipada na ocasião em que começa a abertura da glote (nesse momento verifica-se repentina separação das cordas vocais). A abertura da glote pode ser passiva, mas há especulação sobre se ocorre contração dos músculos adutores da laringe simultaneamente com a contração do diafragma.
Bartllet et al., (1973) concorda que o papel da laringe (além do fechamento da glote) é importante na variação da resistência das vias aéreas, determinando, assim, o fluxo aéreo durante a expiração, a duração da expiração e a frequência respiratória. Segundo eles, o alargamento da abertura da glote durante a inspiração e seu relativo estreitamento durante a expiração influencia diretamente o padrão respiratório.
Durante a fase inspiratória do ciclo respiratório, há também contração intermitente do diafragma. Em outras palavras, a contração diafragmática alterna-se com a contração do adutor da laringe (fechamento da glote). As contrações alternantes dos adutores da laringe e do diafragma evitam a negatividade extrema na pressão traqueal por ocasião do fechamento da glote e promovem fluxo inspiratório durante a ocasião em que a glote está aberta. O fluxo aéreo durante a inspiração é fornecido pela contração intermitente do diafragma e expansão pulmonar que se segue. O ciclo repetido e a produção do som continuam, até que a inspiração se complete (REECE, 2006).
Durante a fase expiratória do ciclo respiratório, a tendência à retração dos pulmões cria pressão traqueal maior do que a pressão faríngea, quando a glote está fechada. Quando os adutores laríngeos se relaxam, a glote se abre, a pressão traqueal mais elevada força o ar pelas cordas vocais, um som é produzido, a glote fecha-se (as cordas vocais tornam-se aproximadas), a pressão traqueal aumenta, o ciclo repete-se, até que a expiração se complete (REECE, 2006). Sabe-se que os músculos expiratórios (intercostais) tem importante papel no ronronar do gato, assim como participa na vocalização do homem (KIRKWOOD et al, 1986). Esse papel dos músculos expiratórios foi negado por Remmers e Gautier (1972).
Sabe-se que a laringe, especialmente nos gatos, é um importante órgão efetor respiratório, que permite uma fina regulação do fluxo respiratório, principalmente durante a expiração (BARTLETT et al, 1973).
O efeito cardiorrespiratório mais óbvio são taquipnéia e taquicardia. As frequências cardíacas e respiratória aumentam invariavelmente quando o ronronar começa e se mantem assim durante todo o processo. O aumento da frequência respiratória é acompanhado de uma diminuição na duração das fases inspiratórias e expiratórias (REMMERS e GAUTIER, 1972).
A estimulação infundibular é a responsável pela iniciação do ronronar (GIBBS e GIBBS, 1936), um achado importante também presente na taquipnéia provocada por outros motivos, como na hipertermia (REMMERS e GAUTIER, 1972). Outra semelhança entre o ronronar e a hipertermia é que a hipercapnia ou reduz ou falha em aumentar a frequência respiratória nesses dois estados (ANREP e HAMMOUDA, 1933).
Assim como a tosse e a vocalização, o ronronar pode ser categorizado como um ato que envolve a coordenação de músculos vocais e respiratórios (REMMERS e GAUTIER, 1972).
A razão do ronronar dos gatos não é conhecida. Sabe-se ocorrer nas ocasiões em que estão contidos, quando se encontram doentes e quando estão dormindo. Parece possível que a natureza intermitente das fases inspiratória e expiratória do ciclo respiratório, quando um gato está ronronando, pode fornecer ventilação melhorada e evita atelectasia durante as ocasiões da respiração superficial. Em outras palavras, o ronronar pode fornecer função semelhante para as respirações complementares (REECE, 2006).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARTLETT, D., REMMERS, J. E., GAUTIER, H. 1973. Laryngeal regulation of respiratory airflow. Respiration Physiology 18, 194-204; North-Holland Publishing Company, Amsterdam.
BEAVER, B. V. 1992. Feline behavior: a guide for veterinarians. St. Louis: C. V. Mosby.
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