O PAPEL DO SONO NOS ANIMAIS SEGUNDO UMA ABORDAGEM EVOLUCIONISTA
Notícia publicada na Folha de São Paulo. São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005
Cientistas estudam o descanso em animais para revelar os mistérios do ato de dormir
O sono dos justos
CARL ZIMMER
DO “NEW YORK TIMES”
Num laboratório da Universidade Estadual de Indiana, umas doze iguanas verdes se esticam tranqüilamente em terrários. Elas passam as horas tostando sob suas lâmpadas de calor, e à noite fecham seus olhos -ou algumas vezes só um deles. Elas levam vidas confortáveis, indistinguíveis de qualquer iguana de estimação, não fosse uma notável exceção: os conjuntos de fios de registro de ondas cerebrais que saem de suas cabeças.
Uma equipe de cientistas de Indiana gostaria de saber o que acontece nos cérebros das iguanas quando as luzes se apagam. Elas dormem como os humanos? Elas desligam o cérebro todo, por exemplo, ou podem se manter metade dele acordado?
Esses cientistas em Terre Haute esperam que as iguanas também ajudem a lançar alguma luz sobre uma questão ainda mais fundamental: por que o sono existe. “O sono atraiu uma tremenda quantidade de atenção na ciência, mas nós não sabemos realmente o que ele é”, disse Steven Lima, um biólogo da Universidade Estadual de Indiana.
Lima pertence a um grupo pequeno mas crescente de cientistas que estão dando grande ênfase à pesquisa do sono no reino animal. Eles suspeitam que a maioria das espécies animais precisa dormir, sugerindo que o descanso humano tem uma história evolutiva que remonta a meio bilhão de anos atrás.
Hoje, os animais dormem de formas muito diferentes: alguns morcegos por 20 horas diárias, por exemplo, e girafas por menos de duas. Para entender por que as pessoas dormem como dormem, os cientistas precisam de uma explicação suficientemente poderosa para incluir os milhões de outras espécies que também dormem.
“Uma das razões pelas quais não entendemos o sono é que não levamos em conta essa perspectiva evolutiva sobre ele”, disse Lima.
Abrangência
O sono já foi considerado exclusivo dos vertebrados, mas em anos recentes os cientistas descobriram que invertebrados, como abelhas e camarões de água doce, dormem também. O trabalho mais extenso foi feito em moscas-das-frutas. “Elas descansam dez horas por noite, e se você as mantiver acordadas por mais tempo, elas precisam dormir mais”, disse Giulio Tononi, psiquiatra da Universidade de Wisconsin.
O paralelo entre moscas-das-frutas e humanos chega até aos neurônios. As duas espécies produzem, durante parte da noite, a atividade elétrica de baixa freqüência conhecida como sono de ondas lentas. “As moscas nos surpreenderam com o quão perto elas estavam de nós de muitos modos”, disse Tononi.
Descobrir o sono em vertebrados e invertebrados levou os cientistas a concluírem que o fenômeno emergiu muito cedo na evolução animal -talvez 600 milhões de anos atrás. “O que estamos fazendo ao dormir é um fenômeno evolutivo muito antigo”, disse Lima.
Os cientistas propuseram uma série de idéia sobre a função primordial do sono. Tononi acredita que ele tenha evoluído como uma forma de permitir que os neurônios se recuperassem de um dia duro envolvido em aprendizado. “Enquanto você está acordado, você está aprendendo o tempo todo, consciente disso ou não”, ele disse.
Aprender fortalece algumas conexões entre neurônios, conhecidas como sinapses, e até forma novas sinapses. Essas sinapses exigem muita energia extra. “Isso significa que ao final do dia, você tem um cérebro que custa mais energia”, disse Tononi. “É aí que o sono entraria.”
Ele argumenta que as ondas lentas enfraqueceriam as sinapses durante a noite. “Se tudo fica mais fraco, você ainda mantém suas memórias, mas a força geral diminui”, disse. “Na manhã seguinte você ganha em termos de energia e desempenho.”
Verificação
Tononi e sua colega da Universidade de Wisconsin, Chiara Cirelli, apresentaram sua hipótese num estudo publicado no periódico científico “Sleep Medicine Reviews”. Tononi acredita que isso poderá ser testado e verificado no futuro, conforme os cientistas documentem o sono em outras espécies animais. “Seria uma coisa muito básica que se aplicaria a qualquer cérebro que possa mudar”, disse.
Já se passaram quase 600 milhões de anos desde que os ancestrais dos humanos divergiram dos das moscas. Conforme esses ancestrais evoluíram, seu sono evoluiu também. O sono humano, por exemplo, tem não apenas o sono de ondas lentas, mas momentos em que os olhos fazem movimentos rápidos e em que sonhamos. O movimento rápido dos olhos, ou sono REM, na sigla inglesa (como é mais conhecido), geralmente vem mais tarde da noite, após períodos de sono de ondas lentas intensos.
Outros mamíferos também experimentam uma mistura de sono REM e não-REM, assim como as aves. Os pesquisadores do sono gostariam de saber se o padrão existia no ancestral comum de aves e mamíferos, animais reptilianos que viveram 310 milhões de anos atrás. Também é possível que aves e mamíferos tenham desenvolvido independentemente esse padrão de sono, assim como aves e morcegos independentemente adquiriram asas.
Responder a essa pergunta pode ajudar os cientistas a entender por que o sono REM existe. Cientistas há muito debatem sua função, sugerindo que ele possa ter papéis importantes na memória e no aprendizado. Na edição de 27 de outubro da revista científica “Nature”, Jerome Siegel, especialista em sono da Universidade da Califórnia em Los Angeles , argumenta que o REM não tem um papel fisiológico vital como o sono de ondas lentas. Ele aponta que danos cerebrais e até medicamentos como antidepressivos podem reduzir o REM sem qualquer efeito maléfico aparente.
“As pessoas que não têm sono REM são notavelmente normais”, apontou Siegel. “Não há evidência de problemas emocionais ou intelectuais.” Mas então por que mamíferos e aves têm sono REM? “A melhor resposta que eu posso imaginar é que ele está lá para prepará-lo para fugir”, disse Siegel. “Quando o trabalho importante do sono está feito, o sono REM torna-o tão alerta quanto possível enquanto dorme.”
Uma vantagem de estar alerta, mas imóvel é que você pode escapar mais rápido de um predador. Lima e seus colegas argumentam, na edição de outubro da “Animal Behavior”, que o sono pode ter sido profundamente moldado durante a evolução pela constante ameaça de predadores. Dessa perspectiva, é estranho que animais passassem várias horas de cada dia em um estado tão vulnerável. “É muito perigoso ficar desligado desse jeito”, disse Lima.
(Matéria extraída do site: http://carlosphi.blogspot.com/2006/03/o-papel-do-sono-nos-animais-segundo.html)
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