Caio Andrade Da Silva, Ismar Araujo de Moraes, Carolina Tonini Prado dos Santos, Naiara Viegas Portella Lemos e Nazareth de Novaes Rocha.
2021
O coração possui como sua principal função bombear o sangue com nutrientes para todo o corpo e, portanto, depende de mecanismos específicos para que isto ocorra de forma eficiente já que a contratilidade miocárdica deve ser sempre precedida da atividade elétrica. O tecido cardíaco é considerado um verdadeiro sincício, uma vez que o potencial de ação se propaga de uma fibra para outra por meio das junções comunicantes ou “gap junctions”, gerando a despolarização de todo o coração. No entanto, para que a atividade elétrica no coração seja gerada e sequenciada, é necessária a presença de células marcapasso no coração que possuem a propriedade de automatismo, isto é, a capacidade de despolarização automática. O principal grupamento de células com atividade marcapasso no coração é denominado nó sinoatrial (SA) ou sinusal. O nó SA é capaz de gerar um frequência cardíaca de 60 a 100 bpm e pode sofrer modulação extrínseca do sistema nervoso autônomo (SNA). Na vigência da atividade simpática, ocorre um aumento da frequência de despolarização do nó SA gerando taquicardia, enquanto que na vigência da atividade parassimpática, ocorre diminuição da frequência de despolarização das células marcapasso acarretando bradicardia. (REECE, 2016).
Em 1887, Augustus Waller utilizando o eletrômetro capilar de Lippmann, pôde demonstrar a possibilidade de registro dos impulsos elétricos do coração a partir da superfície corpórea, tendo como base o conhecimento de que os fluidos corpóreos são bons condutores de eletricidade, sendo, assim, o primeiro a usar o termo eletrocardiograma (ECG). O eletrocardiograma (ECG) é o registro da atividade elétrica originada a partir da atividade cardíaca por meio do eletrocardiógrafo. O eletrocardiógrafo, por definição, é um aparelho (voltímetro) que capta a atividade elétrica gerada no músculo cardíaco que se propaga até a superfície do corpo, convertendo-a num registro gráfico da amplitude em função do tempo, ao qual se denomina eletrocardiograma. (FERREIRA et al., 1998).
O ECG é uma ferramenta importante para avaliação do funcionamento elétrico do coração, sendo capaz não somente de detectar frequência cardíaca, como também avaliar a presença distúrbios de condução, arritmias e sobrecargas das câmaras cardíacas, tornando se indispensável no diagnóstico de cardiopatias e possuindo também aplicabilidade na monitoração cardíaca do paciente durante procedimentos cirúrgicos.
A Eletrofisiologia Cardíaca
As células musculares cardíacas são as principais constituintes do tecido cardíaco e realizam a contração do músculo cardíaco, possuindo a organização em sarcômeros, com filamentos de actina e miosina, semelhante às células do músculo estriado esquelético. Entretanto, possui diferenças fundamentais, são uninucleadas e seu núcleo é central, além de possuírem, em suas extremidades, os discos intercalares, fundamentais para a comunicação entre as células, dado que permite a difusão de íons e potenciais de ação, o que garante a contração coordenada. Um disco intercalar é uma junção comunicante, formada por uma membrana dupla ondulada que separa células adjacentes em fibras de músculo cardíaco. (REECE, 2016).
Uma vez iniciada a despolarização do nodo SA, a ativação elétrica se dissemina para o átrio direito e, então, por meio do feixe de Bachmann, continua para o átrio esquerdo. Finalmente, as frentes de onda se convergem para uma única conexão, que se estabelece no nó atrioventricular (AV), localizado próximo à conexão entre átrios e ventrículos. A partir dele, a condução elétrica atinge o Feixe de His e seus ramos direito e esquerdo e, finalmente as fibras de Purkinje, despolarizando os ventrículos. Vale à pena ressaltar, que apesar do nó AV apresentar propriedade de automatismo, em condições de funcionamento normal, ele funciona como único ponto de passagem de atividade elétrica dos átrios para os ventrículos, freando a passagem rápida da atividade elétrica dos átrios para o ventrículos, impedindo assim que ambos se despolarizem simultaneamente, o que seria antifisiológico. (REECE, 2016).
Figura 01: Tecido Muscular Estriado Cardíaco. Fonte: Adapatado de REECE, W. O. Atividade Mecânica do Coração. In: REECE, W. O. Dukes: Fisiologia dos animais domésticos. 13ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. Figura 29.1.
Quando uma célula cardíaca desenvolve um potencial de ação e, consequentemente, sofre despolarização, há criação de um gradiente de voltagem (isto é, diferença entre a voltagem da célula despolarizada e da célula vizinha), que permite um fluxo de cargas positivas. O potencial elétrico gerado pelas células marcapasso caracteriza-se por apresentar um potencial de membrana de repouso de aproximadamente -60 mV e uma fase 0, com característica ascendente lenta, dependente da abertura de íons Ca+2. A fase descendente é determinada pela abertura de canais de K+ e efluxo do mesmo para o meio extracelular. No entanto, quando o valor do potencial volta a se aproximar do potencial limiar, ocorre uma nova despolarização espontânea devido à abertura de canais específicos de Na+ denominados If presente somente nas células marcapasso. A entrada de Na+ seguida da reabertura dos canais de Ca+2 volta a despolarizar a célula. Apenas as células auto excitáveis conseguem realizar esse mecanismo, e isso se deve à presença destes canais específicos, chamados canais If. Este potencial de membrana instável é o potencial de célula marcapasso, uma vez que ele nunca permanece em valor constante disparando sempre e de forma regular, um novo potencial de ação. Devido à característica lenta da fase 0 do potencial de ação, estas células marcapasso são também denominadas de células de despolarização lenta. (REECE,2016).
Figura 02. Potenciais de ação nas células autoexcitáveis cardíacas. As células autoexcitáveis têm potenciais de membrana instáveis, chamados de potenciais marcapasso. Fonte: Adaptado de SILVERTHORN, D. U. Fisiologia Cardiovascular. In:__. Fisiologia humana: Uma abordagem integrada. 7ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2017. Figura 14.12.
Além das células marcapasso, existem células denominadas “células de despolarização de resposta rápida” responsáveis pela condução e ativação elétrica de uma grande área do miocárdio; são elas: células do miocárdio atrial e ventricular e do sistema His-Purkinje. São assim denominadas por apresentarem um potencial de ação rápido caracterizado pela fase 0 ascendente rápida decorrente da abertura dos canais de Na+. Apresentam também uma fase 1 (início da saída de potássio por canais específicos), não existente nas células marcapasso, uma fase 2 caracterizada pela entrada de Ca+2, uma fase 3, onde se observa aumento de abertura de mais canais e efluxo de K+ e uma fase 4 (fase da bomba Na+-K+ ATPase). Na fase 4, a célula volta à sua condição basal, ou seja, de repouso e não volta a se despolarizar até que um novo estímulo elétrico proveniente das células marcapasso seja capaz de atingir o potencial limiar e deflagrar um potencial de ação.
Figura 03: Componentes envolvidos na eletrofisiologia cardíaca. Fonte: “Eletrofisiologia cardíaca”. Webvideoquest de Fisiologia Veterinária da UFF.
Em conjunto, as células dos nodos SA, AV e do sistema His-Purkinje, garantem o batimento cardíaco de forma padronizada e específica, de modo que em um batimento, ambos átrios contraem-se quase simultaneamente e, em seguida, ocorre uma pausa, decorrente do retardo do nó AV supracitado. Então, os dois ventrículos contraem-se quase simultaneamente e, então, o coração inteiro se relaxa, portanto, a organização dos batimentos é responsável pelo suprimento adequado de tecidos por todo o organismo, favorecendo sua homeostasia. (KLEIN, 2014)
A Interpretação das Deflexões Eletrocardiográficas
O papel de registro do ECG tem o desenho de pequenos quadrados de 1mm de lado. A abscissa marca o intervalo de tempo, onde cada 1mm corresponde a 40ms, considerando-se a velocidade padrão de 25mm/s; a ordenada marca a voltagem, em que 1 mm corresponde a 0,1mV. No aparelho devidamente ajustado, a calibração corresponde a 10mm ou 1mV.
O eletrocardiograma normal é composto pelas deflexões eletrocardiográficas, também conhecidas como onda P, complexo QRS e onda T, além dos respectivos segmentos e intervalos formados pela disposição destas deflexões.
Onda P
A primeira onda do ECG normal. A onda P é a representação da despolarização atrial podendo variar entre positiva, negativa ou bifásica. A presença de onda P indica a presença de ritmo sinusal. Para mensurar a onda P começa-se a avaliar do início ao final da deflexão. As alterações de amplitude ou duração da onda P sugerem sobrecarga atrial, enquanto a ausência de onda P com ritmo irregular pode significar presença de fibrilação atrial.
Complexo QRS
A segunda onda do ECG normal. O Complexo QRS corresponde a despolarização ventricular e deve ser identificado em todos os ciclos cardíacos, observando a sua morfologia: deflexão espiculada, estreita, e amplitude variada. Denomina-se onda Q a primeira deflexão negativa; onda R a primeira deflexão positiva; e onda S a deflexão negativa que segue a R. Aumento na duração do QRS pode significar um distúrbio de condução intraventricular e, consequentemente, bloqueio de ramo.
Onda T
A terceira onda do ECG normal. Corresponde à repolarização ventricular em sua quase totalidade. Onda algo arredondada e assimétrica, com a fase ascendente mais lenta e a descendente mais rápida. A inversão de onda T em várias derivações pode sugerir isquemia miocárdica. Distúrbios hidroeletrolíticos podem também alterar sua morfologia, como a hipercalemia. Neste caso, a onda T tem um aspecto apiculado ou em tenda.
Onda U
Ocasionalmente pode ser identificada uma onda U. A quarta onda do ECG, vindo logo após a onda T: onda arredondada, de curta duração, de pequena amplitude e de mesma polaridade da onda T precedente. Geralmente visível apenas em frequências cardíacas baixas, tem sua gênese atribuída a: repolarização tardia das fibras de Purkinje, repolarização demorada dos músculos papilares e potenciais residuais tardios do septo.
Em resumo:
Figura 04. Eletrocardiograma. Fonte: adaptado de FERREIRA et al (1998). Eletrocardiografia na medicina veterinária. Rev. Educ. Cont. CRMV-SP, v.1, p.54-57, 1998.
Derivações Eletrocardiográficas
Em 1949, Lannek efetivou um estudo sistemático dos registros em cães saudáveis e doentes, introduzindo um sistema de derivações precordiais (Ferreira et al., 1998). Segundo os autores, a “visualização” da atividade cardíaca obtida por meio do ECG, dá-se por diferentes ângulos ou par de eletrodos, chamado de derivação. Cada derivação é formada por um par de eletrodos, um positivo e um negativo.
As derivações fornecem informações da atividade elétrica por meio da leitura da diferença de potencial entre os eletrodos posicionados na superfície corpórea e podem ser divididas em:
bipolares de membros (DI, DII e DIII);
unipolares aumentadas (aVR, aVL e aVF); e
precordiais unipolares (CV5RL, CV6LL, CV6LU e V10).
As derivações bipolares e as unipolares aumentadas representam as derivações básicas a serem utilizadas em cães e gatos, formando o sistema hexaxial do plano frontal. Outros sistemas de derivações são usados em condições específicas e garantem maior precisão na avaliação eletrocardiográfica. Para as derivações de membros, os eletrodos torácicos direito e esquerdo devem ser posicionados na região da pele, acima dos olecranos no seu aspecto caudal e os eletrodos pélvicos direito e esquerdo acima dos ligamentos patelares no aspecto anterior de cada membro. No caso das derivações precordiais, a disposição dos eletrodos para a captação elétrica deve ser no 5º espaço intercostal direito próximo ao esterno para (CV5RL), no 6º espaço intercostal esquerdo, próximo ao esterno (CV6LL), no 6º espaço intercostal esquerdo ao nível da articulação costocondral (CV6LU) e sobre o processo espinhoso da 7º vértebra torácica para derivação (V10).
Os eletrodos têm coloração diferenciada e seguem padrões internacionais estabelecidos pela American Heart Association (AHA) ou pela International Eletrotechnical Comission (IEC). Eles também variam em número, podendo apresentar três, cinco ou dez eletrodos. Na medicina veterinária são normalmente utilizados até 5 eletrodos. Veja a figura abaixo.
Figura 06. Sistema de cores de eletrodos usados em exames de Eletrocardiograma estabelcidaos pela American Heart Association (AHA) e International Eletrotechnical Comission (IEC).
O exame de ECG permite analisar a frequência cardíaca do animal que pode ser calculada pela divisão de 1500 pelo número de quadrados pequenos entre dois complexos QRS ou duas ondas P contínuas. A presença de onda P no ECG, por exemplo, indica que o ritmo cardíaco é sinusal (normal) pois ela reflete a despolarização atrial iniciada pelo nó sinoatrial (SA). Ao contrário, uma ausência de ondas P, pode significar fibrilação atrial . Aumento do intervalo PR sugere bloqueio atrioventricular. Já a ausência da onda P acompanhada de baixa frequência cardíaca, reflete um ritmo juncional onde o marcapasso que está originando a atividade elétrica é provavelmente o seu subsidiário, ou seja, o nó atrioventricular (AV). O aumento da amplitude e alargamentos do QRS sugerem sobrecarga ventricular. Desta forma, podemos concluir que o ECG é de extrema importância não só para identificar o ritmo sinusal e a frequência cardíaca, mas também para verificar a presença de arritmias, bloqueios, distúrbios de condução e sobrecarga das câmaras cardíacas.
KLEIN, B. G. O Coração Como uma Bomba. In: KLEIN, B. G. Cunnigham: Tratado de fisiologia veterinária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. Não paginado. cap. 21
REECE, W. O. Atividade Mecânica do Coração. In: REECE, W. O. Dukes: Fisiologia dos animais domésticos. 13ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. Não paginado. pt. 6, cap. 33.
SILVERTHORN, D. U. Fisiologia Cardiovascular. In:__. Fisiologia humana: Uma abordagem integrada. 7ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2017. Não paginado. un. 3. cap. 14.
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